A economia da alimentação para o autoconsumo
Introdução
A produção para o autoconsumo designa a satisfação das necessidades de um determinado indivíduo ou grupo familiar através do consumo de produtos ou serviços produzidos por ele próprio. Na agricultura familiar traduz-se especialmente pela diversidade da produção de alimentos, originados dos sistemas de produção que visam satisfazer as necessidades alimentares de subsistência dos agricultores e de suas famílias, embora nem todos os alimentos indispensáveis possam ser produzidos pela família, o que permite estabelecer relações com os mercados através da comercialização de parte da produção. Essa estratégia de organização e produção diferencial da agricultura familiar possibilita obter produtos que podem tanto ser consumidos quanto vendidos, representa uma garantia para a sustentabilidade das unidades de produção familiar em relação às unidades de produção comercial que dependem exclusivamente das regras impostas pelo mercado.
A inserção da agricultura familiar nas dinâmicas de mercado
Uma das principais ferramentas utilizadas para incluir a agricultura familiar na dinâmica do mercado foi o acesso às políticas públicas. Essas políticas deveriam potencializar a produção especializada com produtividade competitiva, prioritariamente para o mercado de exportação. Conforme Santos et al., (2006), os agricultores familiares seguiram os caminhos já trilhados em décadas anteriores por grandes propriedades modernizadas e alguns agricultores familiares mais capitalizados. Foram concentrados esforços para a compra de tecnologias modernas, e em conseqüência as práticas agrícolas tradicionais foram progressivamente abandonadas, inclusive a produção para o autoconsumo, que é uma estratégia para a soberania e segurança alimentar.
As profundas modificações nas dinâmicas da organização econômica e produtiva ocorrida nas unidades de produção familiar alteraram a relação desta com o autoconsumo. Na medida em que a agricultura familiar se insere aos mercados, ocorre uma nova lógica organizativa mediada pelo mundo das mercadorias, onde a produção não tem como objetivo apenas o autoconsumo, e passa a integrar a sociedade moderna de consumo que deseja o acesso a um conjunto de bens materiais e culturais. Neste contexto, descreve Grisa (2007) as unidades familiares intensificam o ritmo de trabalho, dão preferência aos “cultivos comerciais”, independente do princípio da alternatividade, e especializam-se em poucas culturas, diferentemente da policultura existente outrora. A produção para o autoconsumo passa de uma condição prioritária para complementar. O tempo de trabalho, a mão-de-obra disponível e os recursos produtivos são reorganizados em função dos cultivos comerciais e estes disputam espaço com o autoconsumo, condicionando-o a uma função de complementaridade.
O valor econômico da produção para o autoconsumo
Uma metodologia para o cálculo do autoconsumo, definido como a parcela da produção animal, vegetal e transformação caseira produzida e consumida pela unidade familiar foi proposta por Grisa (2007). Outra proposta foi elaborada por Garcia Jr. (1989) citada pela autora, teve o objetivo de demonstrar que inseridos numa dinâmica capitalista, os camponeses também eram guiados por uma racionalidade econômica. Nessa outra opção, os agricultores realizavam um cálculo para saber se era mais vantajoso plantar cultivos comerciais ou para o autoconsumo. Se os preços destes fossem de tal ordem que produzindo lavouras comerciais, com o mesmo trabalho despendido, pudessem fazer frente às demandas alimentares da família, a opção seria pela produção comercial e não pelo autoconsumo. Por lançar mão desse cálculo é que a produção para o autoconsumo teria que ser balizada pelo preço ao consumidor, evidenciando o quanto a família gastaria comprando os alimentos necessários.
Na pesquisa realizada por Santos et al. (2006) na região Sul do Brasil com 1.027 famílias rurais formadas em média por quatro pessoas, é expressivo o número de unidades familiares que produzem valores monetários de autoconsumo de até R$ 1.000,00 por ano para 37% do total pesquisado, e até R$ 2.000,00 anuais, para 65% delas. O autoconsumo como uma alternativa de renda interna da família para esse número expressivo de agricultores pode representar crescimento de até 400%, se passar de R$ 500,00 para R$ 2.500,00.
A produção para o autoconsumo como estratégia de segurança alimentar
A produção para autoconsumo é uma forma de internalizar recursos e estimular a segurança alimentar, diminuindo a exposição da reprodução social às relações do mercado; propicia a diversificação dos meios de vida, ampliando o leque de estratégias sob o qual está assentada a continuidade do grupo familiar e, assim, minimiza a sua vulnerabilidade; é uma forma de economização na medida em que aperfeiçoa a utilização dos fatores de produção (terra e força de trabalho) e dos recursos financeiros; restabelece a co-produção entre homem, natureza e trabalho, potencializando os recursos locais; possibilita atender a demanda alimentar e a realização de valores de troca em virtude da característica da alternatividade; alimenta relações de sociabilidade e reciprocidade contribuindo para a coesão da estrutura social; e fortalece a identidade social dos agricultores, conferindo legitimidade e reconhecimento perante os demais (Grisa, 2007).
A produção de alimentos para o autoconsumo é um componente importante da renda da agricultura familiar e fundamental para a sobrevivência do modo de vida rural predominante no oeste catarinense. Entretanto, essa função econômica não pode ser avaliada isoladamente quando se considera o conjunto de objetivos do kit diversidade, que envolve também aspectos sociais, antropológicos, culturais e ambientais. A diversidade de espécies e variedades que compõem a cesta de alimentos produzidos e consumidos na unidade familiar caracteriza a prática de um sistema de produção simplificado de grande importância econômica. Esses elementos contribuem para uma maior autonomia, auto-suficiência e segurança alimentar das famílias agricultoras que praticam a produção para o autoconsumo.
As funções da produção para o autoconsumo
Existem sete funções que a produção para autoconsumo desempenha na agricultura familiar conforme sugere Grisa (2007): a) manter a alimentação sob controle da unidade familiar, ao contrário de um processo de mercantilização ou externalização e contribuir para a segurança alimentar; (b) diversificar os meios de vida; (c) economizar recursos e potencializar o uso da força de trabalho e da terra; (d) restabelecer a co-produção entre homem, trabalho e natureza; (e) atender tanto a demanda das necessidades alimentares do grupo familiar como à necessidade de criação de valores de troca por meio da alternatividade; (f) promover a sociabilidade; (g) contribuir com a identidade social. Portanto, a produção de alimentos para autoconsumo é um dos fatores explicativos da condição socioeconômica das unidades familiares e configura uma estratégia de fortalecimento da autonomia da agricultura familiar.
O kit Diversidade como estratégia de produção para o autoconsumo
O kit diversidade é um conjunto de sementes de variedades locais produzidas e distribuídas entre agricultores organizados em Associações de Desenvolvimento de Microbacias (ADMs) de Guaraciaba – SC. É uma ação planejada e desenvolvida através do projeto Microbacias 2 com a execução de extensionistas da EPAGRI – Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina e a participação de técnicos facilitadores para organizar e desenvolver as ações estratégicas contidas no Plano de Desenvolvimento da Microbacia Hidrográfica.
Diagnósticos realizados nas ações do projeto Microbacias 2 em 2006 revelaram que 75% das famílias deixaram de cultivar arroz e 50% não mais cultivaram feijão para o seu consumo. As ações participativas desenvolvidas através do kit diversidade nas ADMs de Guaraciaba mostraram que a economia, como sinônimo de poupança, é um dos principais aspectos destacados na produção de alimentos nas propriedades rurais. Ao deixarem de adquirir os produtos que consomem as famílias, nos mercados, estão poupando recursos financeiros. De outro lado, a produção de alimentos para o autoconsumo pode representar uma fonte alternativa de renda através da venda do excedente da produção.
Após o desenvolvimento das ações do kit diversidade, pesquisas conduzidas em 2008 e mostradas no capítulo 5.1 desse livro, mostraram que 45% das famílias associadas à ADM Rio Flores declararam ainda necessitar comprar arroz para o consumo e apenas 9% ainda compram feijão. Na ADM Ouro Verde, 43% das famílias compram arroz e 25% ainda compram feijão. Essa pesquisa destacou as principais vantagens do kit diversidade: a produção de alimentos mais saudáveis; a economia gerada por não necessitarem desembolsar dinheiro para obter as sementes desejadas; o consumo dos alimentos produzidos, pois muitas famílias declararam que não teriam condições econômicas de adquirir as sementes das espécies e variedades cultivadas.
Conforme as informações presentes no Plano de Desenvolvimento da Microbacia Hidrográfica do Rio Flores complementados com outros diagnósticos em 2008, buscou-se calcular em valores monetários o quanto representa a economia proporcionada através da produção para o autoconsumo das 145 famílias existentes. A renda média mensal dos beneficiários dessa ADM é formada por 43 famílias na faixa de até 1,0 salário mínimo (SM), 42 famílias com rendimentos entre 1,0 até 3,0 SM, 55 famílias com valores superiores a 3,0 SM e 5 famílias que possuem renda não agrícola. No ano de 2008 um salário mínimo valia R$ 415,00 equivalente a US$ 250,00.
Diagnósticos realizados em 2008 com famílias de agricultores de mais baixa renda da ADM Rio Flores revelaram que na sua própria avaliação os produtos retirados da horta anualmente valem em torno de R$ 200,00 e os produtos retirados anualmente do pomar valem em torno de R$ 500,00. A produção de cereais como arroz e feijão, produtos de origem animal como leite, ovos, mel e produtos processados dentro do estabelecimento como queijo, salame, banha, melado e conservas caseiras foi suficiente para o autoconsumo familiar e na avaliação das famílias proporcionou uma economia anual variável entre R$ 750,00 a 4500,00.
Essa poupança proporcionada pela produção de autoconsumo nas propriedades representa no mínimo 30% da renda bruta da maioria das famílias. Para algumas famílias de mais baixa renda, se a diversidade de produtos produzidos e consumidos por elas fosse totalmente adquirida no comércio local haveria comprometimento de mais de 60% da renda bruta familiar. O valor estimado desses produtos apresenta diferenças entre as famílias pesquisadas devido ao número dos componentes da família, dos hábitos alimentares das pessoas, dos sistemas de cultivo adotados na propriedade e da área disponível para a produção dos alimentos para o autoconsumo. Por outro lado, a facilidade de acesso ao crédito rural do Pronaf, a infra-estrutura pública de transportes e serviços além de outros fatores externos à propriedade afetam diretamente as escolhas e tomada de decisão para o desenvolvimento das ações na unidade familiar.
Desse modo, o kit diversidade pode contribuir significativamente para a melhoria da qualidade de vida das famílias como uma ferramenta estratégica para estimular a produção para o autoconsumo, favorecer o manejo da agrobiodiversidade e oportunizar a geração de renda através da produção e distribuição de sementes de variedades locais entre as comunidades de agricultores familiares.
Notas]
Este artigo faz parte de capítulo do livro Kit Dispersive: Estratégias para a Segurança Alimentar e Valorização das Sementes Locais. Organizado por Adriano Canci, Antônio Carlos Alves e Clístenes Antônio Guadagnin (2010). Editora Gráfica McLee - São Miguel do Oeste-SC- Brasil
Fonti :
D-P-H (Dialogues, Propositions, histoires pour une citoyenneté mondiale) www.d-p-h.info/index_fr.html